À sombra de feminicídios em “Garotas Mortas”

Elisabetta Mazocoli
Escritas Libres
Published in
4 min readMar 21, 2021

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“Garotas mortas”, de Selva Almada, recupera e traz à tona a história de Andrea Danne, Maria Luisa Quevedo e Sarita Mundín, três jovens vítimas de feminicídio nos anos 80 que nunca tiveram os casos concluídos pela investigação policial. Em função disso, as mortes dessas moças deixaram inúmeras questões em aberto e uma terrível angústia assombrando todas as mulheres argentinas. Buscando refletir sobre a memória dessas garotas, a autora exibe as falhas que ainda permanecem na abordagem desse tipo de crime e revela, ainda, um problema que continua latente não só em seu país, utilizando-se para isso de recursos jornalísticos e uma bela literatura.

A autora, também argentina e considerada uma das vozes mais potentes da literatura contemporânea latino-americana, cria um livro com um tom único, que mistura diversos recursos discursivos para criar uma investigação literária que olha com cuidado para o assassinato dessas mulheres — mas também para quem elas eram, seus jeitos, suas relações. Conseguimos, de fato, nos aproximar das vítimas e sentir ainda mais claramente a perda de cada uma. Sem ser apelativa, com uma escrita crua, mas ao mesmo tempo sensível e cuidadosa, Almada traça de forma inusitada o passado dessas meninas, do país, e o momento atual com suas supostas melhorias.

Lembramos, nesse sentido, do quanto a leitura desse livro tem a nos dizer neste momento: durante a pandemia no Brasil, uma mulher tem sido morta a cada nove horas, em crimes que em geral não investigados a fundo. Como padrão, o que se vê é que os homicidas costumam ser ou ter sido maridos ou namorados das mulheres assassinadas — ainda que elas tenham feito, antes de morrer, incontáveis denúncias contra os mesmos. Da mesma forma, na Argentina se deram 1,2 mil feminicídios no mesmo período (sendo que devemos considerar, nesse sentido, a diferença de população dos dois países). A situação geral, portanto, é mais que alarmante, mas vejo que Almada dá um grande passo em direção a algo ao menos traga essas mortes para o foco de uma atenção pública e, dessa forma, busque retomar e desvendar essas histórias. Importante dizer, em relação a isso, que a Argentina adotou como lema, após o período ditatorial que viveu, as palavras “Memória. Verdade. Justiça.”, muito diferentemente do que tivemos no Brasil com a anistia geral, que promoveu uma política de apagamento da memória do período. Pois Selva Amada parece incorporar exatamente esse espírito, quando trata desses crimes.

A obra se inicia abordando o assassinato de Andrea Danne, de 19 anos, que morreu após uma punhalada no coração enquanto dormia dentro de sua própria casa, num crime que envolvia suspeitas da própria família, um relacionamento amoroso confuso, denúncias anônimas e uma irmã que vive com o choque eternamente. Maria Luisa, a vítima do segundo caso analisado, tinha apenas 15 anos quando foi abusada sexualmente e estrangulada, tendo seu corpo abandonado em um terreno baldio enquanto a família a procurava desesperadamente. A menina, que estava começando a trabalhar e a conhecer amigos, teve assim o início da sua vida adulta interrompida abruptamente. Já Sarita Mundín, por sua vez, a mais velha do grupo, tinha apenas 20 anos e ficou desaparecida durante longos nove meses, até que seus supostos ossos foram encontrados perto de uma árvore.

A autora ousa, nessa obra, partir de uma experiência individual, que foi crescer escutando essas histórias, ainda que não as entendesse completamente. E, já adulta, tomando como ponto de partida essa memória angustiante e nebulosa, resolveu tentar de fato investigar os três casos. O livro, no entanto, não se propõe a solucionar os casos, já tão antigos e difíceis de serem concluídos, mas sim dar a devida atenção a crimes tão chocantes e ao mesmo tempo tão absurdamente comuns. O olhar da autora, nesse sentido, não só revela a menina que ela era quando ouviu falar sobre crimes pela primeira vez, logo após o fim da ditadura no país e a euforia que isso trouxe, mas traz também a visão de uma mulher adulta que se vê cansada de assistir à eterna repetição de histórias de feminicídios muito parecidas com aquelas.

Chama a atenção ainda, como um dos pontos altos da obra que estranhamente funciona e envolve o leitor, o uso de uma cartomante para tentar entender o que aconteceu com as garotas, num sinal eloquente de um tempo no qual todos os outros recursos parecem falhar. Ela descobre que também as famílias tentaram buscar entender o que ocorreu com elas usando o mesmo recurso e que este, longe de indicar uma fuga fácil diante da seriedade e complexidade dos crimes, acentuando tudo que há nas histórias que permanece cercado de mistério e dúvida, inviabilizando dessa forma a obtenção de respostas mais claras e definitivas.

Os crimes, então, vistos dessa perspectiva, longe de serem vistos como casos isolados, revelam uma situação sistêmica mais profunda que abala as mulheres e seque intimidando e tolhendo a vida inclusive das gerações atuais. Afinal, mesmo que não estejamos diretamente envolvidos, como a família de Andrea, Maria Luísa ou Sarita, somos levados e compartilhar o mesmo incômodo de Selva Almada e a mesma vontade angustiada de encontrar algum tipo de resposta. Trata-se, portanto, de um livro destinado a um final inconcluso e doloroso, mas que é capaz de revelar muito sobre a vida que nós, mulheres, levávamos — e ainda levamos.

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