Subversão matriarcal em “A casa dos espíritos”

Elisabetta Mazocoli
Escritas Libres
Published in
6 min readApr 9, 2021

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Pra mim nunca foi fácil me identificar com personagens em livros — sempre senti que é comum demais que as personagens femininas fiquem orbitando em torno de homens e, nesse sentido, atuem como meras coadjuvantes sem grande importância em si mesmas. “A casa dos espíritos”, de Isabel Allende, é, no entanto, um caso que destoa completamente desse padrão: sendo um dos romances mais célebres e conhecidos de uma escritora latino-americana, foi especialmente impactante para mim por subverter essa lógica já tão antiquada e cansativa. A autora parece conseguir captar algo de muito pessoal nas relações familiares e encaixa isso com brilhantismo no realismo fantástico, construindo uma história extremamente íntima e perturbadoramente real, em que me vi não só me identificando com as personagens, mas captando também traços de minha mãe, vó e tias em cada uma delas. As três gerações de mulheres da família Trueba que guiam essa história são fascinantes, diferentes entre si e unidas por uma relação de amor e cumplicidade viscerais — o que torna a narrativa, também, uma obra excepcional.

A saga familiar de Clara, Blanca e Alba começa com o casamento entre a matriarca Clara Del Valle e Esteban Trueba, um homem que enriqueceu rápido depois de ter comprado a fazenda Três Marias. A relação dos dois começa com a morte de Rosa, antiga pretendente de Esteban e irmã mais velha de Clara. A moça havia morrido envenenada, num episódio trágico que marcou para sempre a vida dos dois. Após o episódio, Clara, que é clarividente e tinha previsto o acontecimento, se sente terrivelmente culpada pela morte da irmã e decide parar totalmente de falar durante anos e anos. Enquanto isso, Esteban sofre com o desencontro entre os dois e não se relaciona sentimentalmente com nenhuma outra mulher. Quando enfim os dois se casam, no entanto, 20 anos depois, eles se mudam para Três Marias, onde Esteban pretende ter uma família composta por uma esposa que o acompanhe, o ame e cuide dele incondicionalmente, e ainda uma filha também adorável e submissa — e isso é o que ele jamais encontra em Clara ou em Blanca.

Clara, que é logo no começo do livro declarada por um padre como “possuída por um demônio”, exerce essa espécie de bruxaria como uma parte intrínseca de quem ela é. A clarividência dela, ao menos ao princípio, não é vista sempre como algo extraordinário, mas como uma característica singular que compõe um certo mistério acerca dela. Aos poucos, porém, as pessoas ao redor dela (e principalmente Esteban) vão se sentindo mais ameaçadas por seus dons que extrapolam em muito a simples magia: ela de fato se apresenta como uma mulher indomável, sábia, que não se deixa vencer. E, ao mesmo tempo em que habita dois mundos, o natural e o sobrenatural, sua força vital permanece todo o tempo tão presente e tão central que facilmente é percebida como o principal fio condutor da narrativa. Longe de recorrer a estereótipos de bruxas, a obra desenvolve um tipo de realismo fantástico que articula realidade e sobrenaturalidade borrando suas fronteiras e expandindo, assim, a nossa ideia do que pode constituir o poder numa mulher.

Já Blanca, por sua vez, é a filha de Clara que se apaixona profundamente pelo filho de um empregado da fazenda de seu pai e acaba engravidando desse homem. Esteban, chocado e revoltado com a filha, a obriga a casar com outro homem que ela não ama, e ainda tenta matar seu amante. Ela, então, parte também por sua saga pessoal em busca de criar sua filha em seus próprios termos, e não de acordo com a lógica impositiva do pai e da sociedade. Ela encontra o apoio da mãe, nesse meio tempo, e as duas se unem com firmeza notável capaz de contrariar tudo o que era esperado que fizessem.

Nesse meio tempo, acontece uma das cenas mais marcantes do livro: Clara leva um soco na cara de Esteban, que já era notoriamente violento com seus empregados, mas que nunca tinha batido nela. Mesmo aparentemente dependendo do marido, e inibida ainda pelas expectativas sociais que poderiam recair sobre ela, o gesto de Clara a partir daquele dia é muito simbólico e forte. Ela sai de Três Marias, de volta para a cidade, e jura nunca mais dirigir uma palavra a Esteban até o fim de sua vida.

Com o nascimento de Alba, a filha de Blanca, o livro então se renova e traz um frescor: a criança é encantadora, obstinada e herda a vivacidade de Clara com esplendor. Ela é tão cativante que nem mesmo Esteban, seu avô, consegue ficar imune ao seu encanto, e vemos aí um dos lados mais imprevisivelmente afetuosos e delicados do patriarca que antes parecia apenas bruto e raso. Mais tarde, Alba ainda vai estudar, e então acaba se apaixonando por um dos líderes dos movimentos de esquerda que buscavam resistir ao golpe militar no seu país. Essa situação política a coloca, de forma mais aguda, em um antagonismo insuportável com o seu avô — o que os força, de uma vez por todas, a se posicionarem a favor do que é mais central e importante na vida da família, tendo que reconhecer erros e rever passados dolorosos.

Isabel Allende, ainda, cria uma passagem especialmente linda e tocante sobre a morte, sobre a presença que sentimos daqueles que já se foram e sobre como isso configura uma espécie de herança genética que, afinal, nunca se vai totalmente. Após a morte de uma das personagens centrais, por exemplo, continuamos a senti-la inclusive através da escrita, das palavras e dos olhares das mulheres que vieram da linhagem inaugurada por ela. Entramos em contato, assim, com uma forma muito bonita e poética de pensar sobre essas ligações e também sobre o que deixamos de mais importante para aqueles que amamos — e que me fez refletir, também, sobre as mulheres que vieram antes de mim na minha própria família e o quanto delas pode estar ainda vivo em mim.

Vale dizer, ainda, que a autora não cria apenas protagonistas maravilhosas: há também outras personagens femininas mais periféricas que são magníficas e nada previsíveis como Transito, Ferúla, Nívea, Rosa e Amanda, que apesar de aparecerem menos, são complexas e intensas, completamente diferentes entre si. Os homens da história, por sua vez, ainda que exerçam papéis importantes e cheios de camadas, aparecem quase que apenas como objetos do interesse amoroso das mulheres protagonistas ou como um familiar das mesmas — subvertendo, com certa ironia, também essa lógica que é praticamente a regra para personagens femininas em grandes clássicos.

O cenário político, que não foquei mais profundamente aqui, também é um fator que define e tece as relações entre os personagens. Abordando principalmente a ascensão política dos operários e o momento do golpe militar sobre um governo de esquerda recém eleito no Chile, a obra traduz sem didatismos muito da força e da proximidade da própria escritora com os fatos centrais dessa história — na vida real ela é, afinal, sobrinha de Salvador Allende, o presidente de esquerda que foi deposto pelo golpe em questão e perdeu a vida nesse processo. Longe dessa sensação de proximidade de restringir à autora, no entanto, o romance também nos surpreende por tornar reconhecível um padrão de embate político ainda terrivelmente atual e familiar também para os brasileiros de hoje em dia.

Vale notar, ainda, que recentemente Isabel Allende publicou um livro intitulado “Mulheres de minha alma”, em que fala mais sobre sua própria relação com o feminismo e reflete sobre como ele impactou sua obra e sua vida. Considerando, no entanto, o que me fascinou em “A casa dos espíritos”, acredito que esses traços já estavam presentes por inteiro na obra da autora mesmo muito antes dessa explicitação mais recente da questão. Afinal, o centro do romance é justamente a ligação entre as três mulheres que mencionamos — e é através delas que se respira o ar do tempo e todas as reviravoltas históricas do país.

A autora, sendo assim, fala sobre mulheres que se negam a serem reduzidas às expectativas de seus maridos ou pais. Fala sobre mães solteiras, mulheres envolvidas na política e que estão traçando o próprio destino através de formas muito variadas e contundente de resistência. Fala, ainda, sobre as relações entre elas e os laços que criam entre si, com toda a complexidade e a força amorosa que se pode pensar — mesmo quando isso parece mais improvável. Haverá, por fim, algo mais latino-americano do que os elos assim formados e essa explosiva potência?

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