Sinto saudade da minha cidade

Elisabetta Mazocoli
6 min readFeb 15, 2021

A primeira vez que me lembro de ter andado no centro de Juiz de Fora eu ainda não morava aqui, e esta era só a cidade onde morava a maior parte da minha família. Fui passear com meu avô, depois do trabalho dele, lá pelas 17h, e a grande aventura consistiu apenas numa ida a uma galeria pra gente tomar um café e levar um relógio pro conserto. Agora faz tempo que não ando na rua, espero o sinal abrir ou encontro um conhecido no calçadão. E, a cada dia que passa, percebo que sinto falta de mais e mais coisas, como se cada momento daqueles fosse uma sentença se embaçando numa vida já tão distante, fora de compasso, de repente já quase imaginária pra mim. A minha cidade, as luzes da calçada, as lojas e as lanchonetes, a rua movimentada — tudo agora me parece quase um delírio, um retalho de um conto de fadas.

Andei tantas vezes por essas ruas, antes ou depois das aulas, zanzando pra comprar presente, tomar um café ou só mesmo pra fazer hora, que eu nem tinha percebido que elas já tinham virado parte da minha própria caminhada. Sei bem que era ali que minha mãe me levava, ainda bebê e dentro do carrinho, para ver as pessoas e comprar um pão de queijo — antes mesmo de eu ter consciência da minha memória, essas ruas já estavam na minha vida. Tantas vezes lá continuou sendo o meu ponto de encontro, tantas vezes já gostei de me perder em meio à profusão desordenada de galerias quase iguais.

Neste momento já tão longo parece que não existe mais cidade, prédio, outros habitantes neste planeta. Se eu não visse as fotos dos meus conhecidos que estão se arriscando mais no meio desta pandemia, talvez eu já nem acreditaria que a vida parece seguir estranhamente imperturbada para alguns, que há sol lá fora, que ainda há paralelepípedos no asfalto e que as pessoas ainda têm que esperar o sinal abrir. Eles eu ainda vejo, embora só nesse sentido distorcido e duvidoso, mas sei que estão lá de algum modo, e mesmo assim. O que tinha de mais cotidiano na minha própria vida, no entanto, é o que parece pra mim mais difícil de ser retratado, de ser visto acidentalmente. Me lembrei de fotos que tirei antes da quarentena para um trabalho da faculdade e tento reencontrar nelas alguma coisa que me é cara e que elas atestam.

É através daquele olhar que me guiou antes que me dou conta da falta que faz ver conhecidos e desconhecidos na rua, rostos que a gente não escolheu mas que estão lá e que, por isso mesmo, marcam ainda mais nossa passagem. É estranho pensar nesse chão, que tantas vezes passei, e que pra mim agora parece tão improvável quanto seria um chão do Japão, da China, de um outro lado obscuro do mundo. E sei inclusive que mesmo que sim, eu pudesse simplesmente sair de casa agora e ir lá, num faz-de-conta resoluto pra me convencer de que nada mudou, sei bem que eu já não encontraria mais a rua da foto. Já não seria aquela vida, aqueles rostos sem máscaras, aquele meu olhar despreocupado.

E já nem entendo bem como posso estar dizendo todas essas coisas, nesse tom meio saudoso, se nem ao menos sei se realmente gosto dessa cidade. Por muito tempo, aliás, achei que a odiava, amaldiçoei a falta de coisas interessantes pra se fazer aqui, me ressenti contra o que me soava um provincianismo bizarro que talvez só continuasse a ser suportável pros meus avós. Agora imagino que nem meus avós podem mais imaginar como tem andado este lugar. Esta cidade estranha, que até pelo nome já começa longe, já vai negando alguma coisa, pressente que nunca foi dona nem de si mesma. Essa cidade que carrega esse fardo verbal de não estar lá nem cá, não ser uma coisa nem outra, e que parece viver justamente nesse impasse irritante — e, no entanto, também cheio de possibilidades e brechas insuspeitas.

Percebo que tantas vezes eu quis conhecer o mundo, cair na estrada, me livrar de tudo isto aqui — e agora até aqui me parece tão distante. Acho que esta afinal tem sido a minha maior viagem, a maior saudade, o maior tempo que passo longe da minha casa — porque já nessa altura nem a minha casa parece assim tão familiar. Porque ela está inserida num grande nada sem vizinhos, sem prédio, sem rua e sem praça. Como é possível a vida da gente ter sido tão roubada de repente?

Eu nunca antes havia sentido saudade de coisas das quais não gosto especialmente como filas, pontos de ônibus, galerias labirínticas e poças nas calçadas. Mas agora que sinto que mesmo essas coisas bestas e muito cotidianas formaram um pedaço do que sou, e me ocorre que talvez sejam elas que entrem mais fundo na gente, atravessando algum atalho fulminante formado por nossa aparente desatenção, por nossa pobre consciência desarmada e sem comando de nada.

Eu olho pra essas fotos e penso também na pipoca com queijinho vendida nas barraquinhas e que nunca se poderia pedir por delivery, penso na minha banca de jornal preferida, nos dias em que desabafa um temporal pra acabar com o mundo e no entanto logo em seguida o sol aparecia de novo e o céu ficava num tom rosa-acinzentado precioso, incompreensível, como se antes daquilo a beleza nunca tivesse surgido dos desastres. Pena que não cheguei a tirar nenhuma foto disso. E que mesmo as fotos avizinhadas dessas horas súbitas agora me pareçam só miragem enganosa, uma paisagem crescentemente estrangeira.

A última vez que estive ali pelo centro, nesse sentido, foi muito significativa: naquele momento do ano em que tudo parece se integrar numa força estrondosa e o ritmo da cidade fica bem do jeito que eu gosto. Na véspera de Carnaval. Todas as várias lojas de bijuteria chinesas estavam vendendo adereços, acessórios e maquiagens de carnaval, e eu fui comprar um glitter rosa com uma amiga. Passamos umas 4 horas andando atrás do tal glitter que fosse do tom exato que tínhamos imaginado juntas. E no final decidimos que já nem precisávamos de mais brilho nenhum e resolvemos ir tomar um café.

Às vezes tem sido doloroso demais lembrar que a cidade tem tanto movimento, que tem ou tinham aquela força anônima capaz de perdurar de algum modo mesmo quando tudo parece distante e acabado. Uma parte de mim precisa esquecer, todos os dias, que essa já foi a vida normal em dias detestáveis, em dias médios, em dias bons — só era assim e ponto final. Se eu olho bem pra essas fotos me paraliso porque quero demais estar nelas e não mais neste outro lugar que habito agora, neste tempo congelado.

Mas é verdade que eu não apareço em nenhuma daquelas fotos — o lugar onde estava era olhando pra vida, pras pessoas, pros velhinhos jogando cartas e xadrez, pro sinal que demorava a abrir, pra quem estava comprando ouro e também pra quem vendia pipoca ou doce de amendoim. A maior parte de mim quer mesmo é poder voltar a ser uma espécie de telespectadora-participante cotidiana da vida, desse ritmo organizado, desses dias nublados e de tudo que há de bom e ruim lá fora. Não há filme, série ou livro que consiga suprir a falta que a gente sente do movimento errático das pessoas pelo caminho, dos dias inconstantes e esquecíveis. Que falta faz não poder acelerar agora este meu relógio, lá naquela velha galeria, e mudar então este meu tempo, este espaço e o que mais for preciso para ajustar, enfim, tudo que era e continua sendo a vida.

--

--