Separações e permanências em “A vida invisível de Eurídice Gusmão”

Elisabetta Mazocoli
5 min readJan 23, 2021

“A vida invisível de Eurídice Gusmão”, de Karim Aïnouz, começa com uma vertiginosa cena de duas irmãs se perdendo enquanto fazem uma caminhada. Mais do que um ponto inicial da narrativa, no entanto, a cena se mostra como uma metáfora e uma antecipação fantasmagórica do que viria mais adiante: a separação trágica das duas e, num outro nível, também a dolorosa ruptura delas com si mesmas.

A assustadora ideia das irmãs se separarem, naquele momento, já conta com a narração de um pensamento de Eurídice após ter, de fato, perdido a irmã. Em ambos os momentos, Eurídice fica para trás porque se vê impossibilitada de seguir a irmã. Não é à toa que, antes de Guida sair, esta diz sinceramente e com grande cumplicidade: “eu prometo que da próxima vez eu te levo”. Ali se vê que a intenção da irmã nunca foi de deixar Eurídice para trás e, no entanto, é isso o que acontece e também o que define a vida das duas.

Quando elas são separadas pela vida, então, vai ficando claro que é tecida entre elas, ainda que à revelia das próprias, uma nova relação de oposição. A Eurídice passa a caber o papel de viver se curvando aos olhos de seus pais (e depois do marido) para que de alguma forma compense a dor que a irmã causou. Isso a faz, é claro, ir perdendo a sua essência e se tornando cada vez mais alheia ao próprio destino. Seu único impulso de continuar resistindo, no entanto, se dá justamente pela memória da irmã, pela expectativa de ainda preservar e mesmo honrar o laço que as unia. O que acontece, contudo, é que todas as suas tentativas mais profundas de existir e de se expressar são capturadas e pervertidas pelos outros — a música, por exemplo, essencial em sua vida, passa a só ser permitida enquanto uma distração e pose.

Guida, enquanto isso, apesar de ter sofrido uma desilusão pessoal grave, permanece espantosamente firme e feroz. Primeiro tenta voltar para a vida antiga, mas diante da brutal rejeição que sofre, vai embora sem olhar mais pra trás. Para tentar sobreviver a partir desse ponto enfrenta graves provações e mesmo alguns momentos de horror ao próprio destino — logo após ter um filho indesejado, sai pra noite e vai dançar na noite já degradada, assim como foi na noite que se separou da irmã. O desespero que seu relativo escapismo oculta fica claro quando registra: “Ele olhava desesperado e eu também” na emocionante e dolorosa carta que escreve a seguir pra irmã já inalcançável, por outro lado, não só conta sobre o nascimento da criança, mas ainda deposita sua esperança de que pelo menos Eurídice poderia se tornar senhora do próprio destino. Enganada pelo próprio pai, que não admitia mais contato entre elas, acreditava que a irmã estivesse em Viena, estudando piano, quando na verdade estava apenas em casa com seu marido. Nenhuma das duas, portanto, havia conseguido escapar por inteiro da maldição que era, naquele momento histórico, terem nascido mulheres.

É também isso que se vê quando Guida conta: “Descobri o que é ser uma mulher sozinha nesse mundo”. Fosse como uma mãe solteira que carregava todo o estigma dessa situação, no entanto, como Guida, ou fosse como uma bem comportada dona de casa, como Eurídice, o grau de solidão e isolamento das duas irmãs era tamanho que, mesmo vivendo a vida inteira na mesma cidade, não se encontram e nem descobrem a verdade sobre a vida uma da outra. Ainda que tantas experiências tivessem continuado ligando e marcando as duas, como a maternidade — para ambas uma espécie de fardo definitivo que as atinge como à revelia de qualquer chance de decisão sobre as próprias vidas. O filme é impecável, nesse sentido, ao marcar cada olhar de Eurídice ao espelho e mostrar o quanto ela se sente em descompasso com a própria vida e o horror que sente sobre o que vê. Outro ponto em comum que as duas apresentam, mesmo separadas, é que constroem amizades fortes com outras mulheres, que as amparam nos momentos mais difíceis. Esses laços, nos dois casos, são afetos profundos que marcam os raros momentos de parceria que tem com alguém após terem se distanciado.

Mais do que qualquer separação, porém, vemos que ambas se mantêm profundamente ligadas durante todo o filme. Ambas, por exemplo, conservam o medo de envergonharem uma à outra. E esse medo é o que as move, de certa maneira, no sentido de tentarem escapar das pressões e prisões que as cercam. Aos poucos, na verdade, vemos que, por mais que em suas próprias vidas estejam se distanciando cada vez mais do que esperavam ser, continuam sendo uma pra outra as mais grandiosas figuras de inspiração e apoio.

Nesse sentido penso que o descompasso entre as duas, por não voltarem a se ver, é certamente de uma dor terrível. Mas ainda mais cruel e mesmo sufocante para Eurídice talvez tenha sido quando, ao descobrir a verdade sobre o que havia de fato acontecido com a irmã, entendeu que as duas haviam passado a vida inteira tendo expectativas melhores uma sobre a outra, e que no final nenhuma delas se confirmou. Afinal, ainda que distantes, era justamente por projetarem uma na outra suas maiores esperanças que representavam ainda o porto-seguro interno uma da outra — e uma desilusão a respeito do que sonhavam sobre a irmã talvez tivesse tido um golpe fatal pra ambas.

Por esse ângulo, ass duas são espécies de mortas-vivas; cada uma à sua maneira e em diferentes momentos do filme trocando esses papéis. Uma existe em reação a outra, formando uma espécie de par. Elas simbolizam, ao longo da vida inteira, um reencontro que nunca vem mas também, e sobretudo, a presença que sempre fica.

Em sua última carta, Guida diz: “Morro de medo de te esquecer. Por favor, não se esqueça de mim.” E essa é a frase que as une numa espécie de vida-correspondente, num eterno diálogo de amor entre as duas. E, ainda que Eurídice não escrevesse cartas, como Guida, ela refletia e reagia sobre a própria vida sempre pensando em sua irmã.

Acho curioso, por fim, o título ser “A vida invisível de Eurídice Gusmão”, já que quem desaparece primeiro e é desligada da família é sua irmã Guida. Acho que, nesse título, transparece o fato de que, mesmo sem romper com a família, Eurídice foi apagada pelo casamento e por todas as pressões sociais que pesaram sobre ela. Em contraponto, percebo que Guida, mesmo tendo passado passando por situações cruéis e inimagináveis, não teve que desaparecer e se alienar tão radicalmente de si mesma. Há ainda talvez, nesse título, a sugestão de que Eurídice viveu uma vida paralela através da memória e da imaginação da irmã. E nessa vida, ainda que ninguém pudesse ver, ela teria sido enfim uma grande e feliz pianista.

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