Riobaldo e Diadorim: para além das convenções e superfícies

Elisabetta Mazocoli
Escritas Libres
Published in
5 min readFeb 11, 2021

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O impacto de ler “Grande Sertão: Veredas” é avassalador: não se pode sair desse grande clássico da literatura brasileira e universal sem se sentir transformado. Entendo agora que não é à toa que, pra tanta gente, esse livro vire uma espécie de bússola, bíblia ou amuleto. Há de fato algo que se ganha ali em termos de largueza e profundidade do olhar que se pode ter sobre o país, a vida, a política, o mal, a coragem, o amor. Trata-se de um livro que faz as perguntas fundamentais e se recusa e simplificar as respostas.

A travessia para a qual a obra de Guimarães Rosa nos convoca é dolorosa, emocionante e até assustadora — mas também capaz de explorar uma enormidade de nuances e delicadezas inusitadas que brotam da relação entre duas pessoas. Riobaldo e Diadorim formam, nesse sentido, um par perturbador e luminoso, por onde se pode entrever todo um mundo de sentimentos e sentidos que podem ser atravessados pelo contato amoroso entre duas pessoas.

Um exemplo notável disso é a primeira vez em que Diadorim é citada, no romance: quando o narrador/personagem Riobaldo se refere a ela como a pessoa com quem ele gostaria de estar no momento de sua morte. É desse modo aparentemente abrupto e enigmático que a personagem é apresentada, e logo nos damos conta de que não poderia haver uma caracterização mais sucinta e precisa que essa. Assim, apesar de nesse ponto da narrativa ainda não sabermos ao certo quem é Diadorim, o que temos de informação tem um tal peso que fica evidente, desde o primeiro instante, a importância avassaladora dela para Riobaldo. Nesse sentido, opera-se uma espécie de mágica discursiva: a personagem é introduzida como se já estivesse lá desde sempre, o que descortina num só lance o quanto ela é central e onipresente para ele e o quanto a narrativa estará atravessada por diferentes tempos.

A aproximação dos dois, de todo modo, vai ganhando mais camadas em idas e vindas ao longo de todo o romance, e é tão feroz e inabalável quanto delicada, criando um contraste único com todo o universo jagunço no qual ambos vivem. Eles são, ali, a exceção incapturável, algo como que um mundo imenso e íntimo que foi todo recriado à parte de toda a brutalidade vigente. Riobaldo e Diadorim, no entanto, não são deslocados do ambiente jagunço para que suas vivências e sentimentos possam emergir em nenhum momento, e por isso muito da força da relação entre os dois vem exatamente da tensão criada entre esses universos. Os dois, afinal, formam um elo que está fora e bem acima dos pactos de cumplicidade guerreira já estabelecidos pela noção de bando, num lugar longamente obscuro que é, no entanto, palmilhado e desvendado com toda a força da invenção poética que brota para descrever cada palavra e gesto que se dá entre eles.

Nesse contexto, me chama muito a atenção a exploração que a obra faz do tema da amizade e do amor num mundo que parece completamente refratário a esse tipo de relação. O que seria de fato esse laço capaz de unir as pessoas pelo bem querer, e como poderíamos separar isso de um amor? Em que sentido isso se diferencia dos laços de favor e lealdade entre jagunços? Como criar espaço para esse campo de sentimentos num universo em que qualquer desarmamento de espírito tenderia a ser visto como uma fraqueza insuportável?

Guimarães Rosa, explorando a fundo justamente esse aparente paradoxo, recoloca toda a questão em outros termos. Antes de tudo, é justamente a Diadorim que Riobaldo se refere como aquele cuja coragem não pisca, o único digno da sua inveja admirada. A própria definição de coragem, no entanto, sofre ali uma transmutação: aos poucos se nota que a palavra se desprende dos seus sentidos mais convencionais, que a ligam mais comumente às qualidades de quem é mais forte ou mais capaz de meter medo e provocar danos nos demais. Como que resgatando algo da etimologia da palavra, a coragem que Riobaldo é desafiado a desenvolver, inspirado em Diadorim, está muito mais próximo da disposição tão rara em trazer o próprio coração à tona.

Esse ponto da relação entre Riobaldo e Diadorim, aliás, já aparece com muita nitidez na famosa cena do encontro inaugural entre os dois, ainda numa pré-adolescência, quando entram como dois meninos num barquinho frágil. Convocado a atravessar o rio pequeno e se aventurar no São Francisco de margens tão alargadas, o menino enigmático que se revelará bem à frente como Diadorim olha para Riobaldo e dispara a pergunta à queima-roupa: “O que é que a gente sente quando sente medo?”. Desde esse ponto, e dali por diante, a questão da aprendizagem tortuosa sobre o medo e a coragem permanecem sempre como um nervo central da obra.

Em torno disso, então, se constrói a relação de encanto e absoluta angústia entre os dois. E, pra quem lê, torna-se uma aflição desconcertante acompanhar o olhar de Riobaldo entrevendo todos os sinais que se mostravam de quem era o seu amigo, para além das convenções e superfícies, sem conseguir, no entanto, crer no que lhe dizia sua intuição e seu desejo. Mais do que um desejo homossexual, nesse ponto, o que parece ainda mais interditado e inconcebível naquele contexto é uma parceria profunda de um homem com uma mulher que se apresentasse como uma guerreira e uma verdadeira companheira de batalha.

É através dessa interdição que se revela melhor aquilo que se espera tradicionalmente que seja um homem, uma mulher e também a relação entre ambos. Para Riobaldo — como para tantos homens, ainda hoje — parecia impossível pensar que uma mulher pudesse ocupar aquele espaço, ou mesmo que poderia haver uma parceria tão equilibrada e dinâmica entre os dois. É desse impedimento maior e também da efetiva transgressão do mesmo, no entanto, que nasce muito da grandeza perturbadora da relação que se desenvolve entre os dois.

A obra é, nesse sentido, uma longa elaboração de uma perda fundamental. É também, porém, um longo trabalho de fazer reviver todas as possibilidades massacradas e toda uma relação que torna-se então, no fluxo caudaloso da narrativa, algo mais que presente e já interminável. Página a página, e camada a camada, nos aproximamos mais de uma relação nada óbvia que parece guardar em si uma chave fundamental na luta contra todas as mil formas do mal. O amor, assim, atuando no dia-a-dia e nos detalhes, se mostra como condição e alavanca para os grandes atos e as maiores travessias.

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