Longo luto, viva herança: “O avesso da pele”

Elisabetta Mazocoli
Escritas Libres
Published in
4 min readFeb 25, 2021

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Desde o título, o romance “O avesso da pele” já se coloca claramente contra a redução da subjetividade dos personagens a qualquer estereótipo ligado à cor da pele. Revela assim, também, que a obra pretende abordar a questão racial por uma perspectiva capaz de trazer à tona o mais íntimo e complexo que se tece nas relações das pessoas. É dessa maneira, então, que mergulhamos nas vidas de Henrique e Pedro, pai e filho, numa narrativa que parte da morte de um e do esforço do outro não só em elaborar essa falta, mas em se aproximar ainda mais daquela outra vida que diz tanto, também, sobre quem ele quer ser.

Mais que um simples luto, portanto, há a necessidade do filho em construir uma herança a partir dos sinais que foram deixados pelo pai, mesmo considerando todas as lacunas de convivência entre os dois. A tentativa de reconstrução de Pedro, nesse sentido, é a chance de conhecer melhor a história da vida do pai e, também, de se despedir devidamente dele (e, paradoxalmente, fazê-lo ainda mais presente em sua vida).

A longa rememoração da relação entre os dois é atravessada, ainda, pelo relato de um paulatino despertar de Pedro em relação à sua consciência racial. E o livro, sempre refratário a simplificações, consegue explorar diversas camadas e pontos de vista a respeito das questões raciais no Brasil sem qualquer recurso apelativo ou excessivamente didático — e faz emergirem, assim, os aspectos mais sensíveis e delicados das relações, assim como os mais dolorosos. Vão se descortinando assim, diante dos nossos olhos, os caminhos pelos quais ambos vão se descobrindo e encarando os próprios medos e as faltas já irremediáveis.

A obra tem, ainda, um olhar absolutamente atento às relações dos dois com as mulheres. O capítulo que fala sobre uma grande briga entre os pais de Pedro, por exemplo, é eletrizante — não reduzindo nada a apenas um lado certo, e também não eximindo de culpa nenhum dos dois. Ver a perspectiva do filho, em momentos da narrativa como esse, tem um efeito especialmente avassalador e imersivo: ele vai reescrevendo a própria história sem corretivos ou atenuantes.

Pedro de fato adentra tanto a história do pai que quebra as fronteiras das gerações e as expande de maneira quase infinita: realmente vai fundo dentro de sua história familiar, incorporando ao seu olhar inclusive as avós, os avôs, as namoradas do pai e até a relação da mãe com sua irmã adotiva. Captando a maneira como todos esses laços marcaram direta ou indiretamente a sua própria vida, Pedro realiza nesse sentido uma elaboração de teor fortemente psicanalítico, incorporando esse referencial aos movimentos através dos quais busca entender e desbravar não só o passado, mas também o futuro que ainda tem pela frente.

No meio desse percurso complexo e fascinante, no entanto, vale a pena prestar uma atenção ainda maior a um dos pontos altos da obra, que acompanha de perto a figura de Henrique enquanto professor de Língua Portuguesa e Literatura numa escola pública. O personagem, em dado momento, está dando aulas para “alunos problemáticos” e repetentes– ele, no entanto, ainda tenta se conectar com eles a partir da literatura. Da mesma forma, e num outro nível, o próprio autor usa referências clássicas da cultura ocidental e outras tantas ancestrais ou atuais da cultura negra para se conectar com o leitor. Uma das passagens mais bonitas da obra, nesse sentido, é quando o professor leva trechos de “Crime e Castigo” para aula e consegue, assim, se inserir numa conversa sobre assassinatos que vinha se desenrolando entre seus alunos. Sem idealizações românticas, mas também sem qualquer cinismo, o que vemos então é algo duro — e, no entanto, não isento de esperança.

Até o final da obra, aliás, fica nítido que uma das coisas que Pedro mais admira em Henrique é justamente isto: essa capacidade que ele teve de se doar, de permanecer de pé junto aos seus alunos, de não perder a própria essência e de tentar ser um pai, um homem e um professor melhor. Com todas as suas falhas e defeitos, então, o que vai sendo incorporado à vida de Pedro é uma figura visceral e inesquecível.

O livro se encerra, assim, com um final absolutamente poético e comovente, ainda que muito triste. E vemos que o amor entre pai e filho esteve sempre permeado, também, pelo amor à literatura, ao ensino e à musica — o amor à vida, enfim, com todos os seus problemas, injustiças, tragédias e também sua beleza.

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