Concentração, coragem, explosão: “A cachorra”, de Pilar Quintana

Elisabetta Mazocoli
Escritas Libres
Published in
5 min readApr 23, 2021

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Às vezes me pergunto o que exatamente constitui um bom livro. Será que há alguma regra? Penso nos grandes clássicos, e eles me parecem ter algumas coisas em comum: apresentam diversas perspectivas, falam dos grandes temas que definem o ser humano, criam um clima imersivo ou têm alguma inovação de estilo. Todas essas características pra mim também são as que mais me chamam a atenção nos livros que eu leio. No entanto, venho percebendo que há exceções a essa minha inclinação por livros com esse leque aberto de questões: são uns livros concisos que se concentram em uma personagem e mergulham num um tema e a partir daí, também conseguindo então criar um clima tão imersivo e profundo quanto aqueles outros.

Foi justamente isso que aconteceu durante a leitura de “A cachorra”, de Pilar Quintana: me deparei com um livro completamente coeso, envolvente e capaz de tirar fôlego numa curta narrativa que mergulha profundamente na relação de Damaris com a sua Cachorra.

Na obra, conhecemos a personagem principal a partir do momento em que ela adota uma cachorrinha ainda filhote. Esse ponto de partida já apresenta uma relação de quase coexistência, que vai sendo reforçada e colocada em foco durante o resto do livro — mesmo quando Damaris relembra seu passado a partir da existência do animal. A protagonista, logo vemos, sofre muito por não ter conseguido ter filhos e por ter uma vida considerada “desajustada” devido a isso. A falta da criança, nesse sentido, dá lugar à existência da cachorrinha: até o nome “Chirli”, dado ao animal, retoma e repete o da filha perdida.

O livro começa a falar, então, dos diversos sentimentos maternais que a mulher passa a sentir com a cachorra. Primeiro, há um desejo quase incontrolável de estar perto, de cuidar da melhor maneira possível e amar incondicionalmente. Esse desejo se mantém por boa parte do livro — mas também vamos sendo expostos ao fato de que um amor profundo assim pode gerar sentimentos inesperados e bem mais complexos do queo previsto. Ao não conseguir controlar a cachorra (seja para que ela se comporte bem ou para que não fuja mais), a mesma passa a ser um dos grandes tormentos e fontes de frustração da personagem principal. É justamente a partir do momento em que a cachorra começa a fugir que a relação das duas desanda. Damaris não consegue contê-la de jeito nenhum, nada parece funcionar: nem as tentativas de prendê-la nem de cativá-la mais definitivamente.

Na primeira vez em que Chirli some, Damiris acha que ela não irá mais voltar e é atravessada por uma dor profunda. Mas quando ela volta e Damaris percebe que ela irá continuar sumindo e voltando, deixando-a então num estado de constante angústia e espera, a relação entre as duas passa por uma transformação tormentosa. Nesse momento, é quase possível pensar que ela está tentando humanizar demais a cachorra, que tem necessidades próprias e independentes, e não pode ser controlada assim numa espécie de relação entre mãe e filha. No entanto nos pegamos pensando: não são esses, também, sentimentos muito humanos? Sentimentos que mães e filhas sentem frente às necessidades uma da outra?

A partir desse ponto do livro, notamos também uma trajetória que vai ganhando mais diferenciação e singularidade: a de Rogelio, o marido de Damaris. Até então, o homem era bastante agressivo com os outros cachorros da casa e quase proibia a mulher de continuar buscando novas formas de tentar engravidar numa trajetória que vinha sendo exaustiva. Mas aos poucos ele parece ir se acomodando à história da mulher com cachorra — ou ao menos percebendo com mais nitidez o tamanho da solidão que a mulher sentia. A presença da cachorra e a relação da mulher com ela parece iluminar a falta que ela sentia de ter uma filha, e também o quanto aquele desejo se aprofundou dentro dela a um nível de desespero. Mesmo distante e ainda frio, então, só assim o marido parece enxergar a mulher pela primeira vez.

Em seguida, ele também a vê com certa desconfiança: vai percebendo que a mulher está tendo comportamentos estranhos com a cachorra, reações que parecem descuidadas, abruptas e exageradas. Com a gravidez de Chirli, que parece tocar ainda mais na ferida de Damiris, o desinteresse da segunda pela primeira é implacável e atinge um ponto decisivo quando Damiris decide doar a cachorra. Ironicamente, a partir desse fato Chirli passa a voltar seguidamente para o lugar que até então tinha sido a sua casa — o que provoca uma ira ainda maior em Damiris.

Com um clima de tensão e mágoa se aprofundando de maneira rápida e eletrizante, sentimos de maneira ainda mais clara o tamanho da solidão da protagonista e o quanto ela sente que precisa se livrar da situação como única forma de permanecer sã. E então somos apresentados a um desfecho terrível.

Estranhamente, quando penso no livro, me vem imediatamente à cabeça o mar, um pano de fundo um tanto longínquo que percorre a narrativa e que eu nem tinha mencionado antes. Fico imaginando Damiris olhando as ondas, a solidão que ela sentia vendo o horizonte, sua sensação de pequenez e insignificância. Um pouco do que sentimos ao ler “A Cachorra”. E não por acaso, a cena final do livro é justamente de Damiris na praia, pensando sobre o seu destino e vendo-o se aproximar com rapidez.

Vale dizer, ainda, que a beleza da escrita do livro está justamente na crueza do texto e no quanto a autora conseguiu concentrar tantas camadas e nuances numa só história forte. É preciso falar nesse texto — que a autora, Pilar Quintana, escreveu enquanto dava mamadeira para seu bebê. Essa história veio até ela, e agora vem a mim e a você. Eu ainda não sei bem como a digerir, como a esquecer.

Por fim, retomo a questão inicial: acho que o que faz um livro extraordinário não é uma regra, uma receita de componentes necessários, mas talvez um olhar certeiro e desbravador para algo que não estava na superfície. É o que faz “A cachorra”.

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