Como uma herança

Elisabetta Mazocoli
5 min readMay 13, 2021

Eu me lembro bem que a casa do meu avô sempre me pareceu uma espécie de museu habitado dentro do qual ele escondia suas memórias no meio das belezas do mundo. Ele, um advogado, sempre teve um misterioso talento pra decoração que eu nunca entendi bem de onde veio, mas que tentei muito copiar. Meu avô sempre viveu bem nesses detalhes e nesses meios termos entre uma certa rigidez formal e um gosto deleitoso para os papéis de parede mais inusitados. E ainda hoje, quando me lembro da casa dele, a primeira coisa que me vem à cabeça é este mesmo vaso que encaro agora e que tento decifrar.

O vaso ainda está escondido, entre caixas, mas fico imaginando que ele deveria ocupar um lugar grandioso da minha casa imaginária –algo como um pedestal, bem destacado, solene como merece ser. Era do meu avô, eu ensaio dizer, só pro caso de alguém ver e perguntar. Era do meu avô, eu digo mais uma vez, lembrando, no entanto, que ele ainda está escondido, mas já nesse passado tão súbito e nesse meu futuro insuspeito como detentora de tal estranho objeto.

Eu carrego o vaso pela casa, testo colocá-lo em todos os cantos. Mas em cada prateleira, quina de mesa ou parede ele me parece cada vez mais torto, opaco, menor. Outras vezes vou achando que o resto da casa é que está destoando ridiculamente daquela beleza, daquela preciosidade. Eu, inclusive, não pareço estar à altura. E aí o contraste me cega, me confunde, me aturde completamente: como é que aquele vaso vai poder combinar com todo o resto? Ainda assim sinto nos meus olhos o mesmo fascínio de antes e de sempre.

O vaso veio de uma feira de antiguidades do Japão, lugar onde jamais sonhei em colocar os pés. E tudo nele entra numa extrema oposição em relação a tudo que está ao meu redor, criando um perfeito descompasso. Na casa do meu avô, porém, e ao lado dele, funcionava em perfeita melodia e nunca esteve deslocado. Entendo de repente que aquele vaso, de uma cultura que não se encaixa de modo algum aqui, representando um bando de gueixas delicadamente douradas e dedicadas a tecer alguma coisa, de alguma maneira íntima e confusa fala muito sobre mim e sobre meu avô.

Essa intimidade chega a ser perturbadora. E percebo com nitidez como a coisa funciona: às vezes acontece comigo de algum filme ou música me pegar desprevenida, justo quando estou pensando em outra coisa, e aí bem naquela frase mais distante sinto que aconteceu uma espécie de uma virada de chave, e então começo a achar que aquilo está falando exatamente sobre mim. Tenho mesmo quase certeza, sinto que posso jurar — e quando olho pro vaso vejo um reflexo estranho, turvo, revelador.

Esse é o efeito que meu avô tem sobre mim, também. Quando estou com ele acabo me lembrando de coisas que minha memória duvida guardar, como se só existissem naquela fração em que estamos juntos, e vejo que ele também descobre ligações e caminhos entre nós que já nem notávamos que existiam. Me lembro que nas férias ele me levava numas feiras de antiguidade como aquela do Japão e inventava coleções sem cabimento de bengalas, relógios de parede, louças. Quando pequena eu não entendia bem aquilo e falava com a minha mãe que ele deveria estar investindo em coisas mais úteis como bonecas, adesivos autocolantes, cadernos de flor. Mas a verdade é que também me tornei uma colecionadora — menos organizada e sem recursos, mas com certeza tão fascinada por objetos quanto ele.

Ele também colecionava histórias e contava tudo pra mim. E então era como um tecedor de vidas, na iminência de ser tantas coisas que agora eu também quero ser. E quando ele me olha diz coisas parecidas com as que eu diria, pensa em tudo que eu pude viver e que ele também desejou. Apesar disso, vejo que não somos parecidos, nem de jeito nem fisicamente, e tampouco nos completamos: se não fôssemos parentes, talvez não tivéssemos nada a dizer um pro outro. Somos um pouco como o vaso destoante e precioso, um na vida do outro.

Ele me ensinou a andar de bicicleta, mas eu desaprendi — e muitos anos depois fui de novo tentar aprender só porque queria que ele visse que eu sei. Meu avô estudou como pode, do jeito que pode, e aprendeu duas línguas sozinhos, sem ter com quem falar. Ele inclusive inventou uma língua, vê se pode, criar assim do nada tantas palavras, inventar uma conexão única e inegável. Só ele e o irmão sabiam falar, mas ele bem que tentou me ensinar quando eu era pequena. Eu não conseguia entender bem, mas fingia que entendia e acho que ele acreditava. Vivi minha vida tentando participar dos segredos dele.

Meu avô com certeza foi o meu maior presenteador nesta vida: já me deu canivete, boneca russa, colar de pérolas, kit de sobrevivência, placa de advogada onde se lia “Dra. Elisabetta”, flores no aniversário, roupinhas de Barbie. Já fez minhas comidas preferidas e já passou incontáveis Dias dos Pais comigo. E ele sempre foi tão bom nisso que às vezes eu pensava com quem é que ele devia ter aprendido a fazer aquilo, já que ele mesmo havia perdido o pai tão novo. Ele me dizia que essas coisas não se aprendem, se resolvem, se encaixam. E eu queria muito que ele me ensinasse isso, porque sempre tenho precisado aprender antes de resolver, calcular antes de tentar encaixar.

Antes do vaso, teve um presente que ele me deu e também me perturbou: um anel do pai dele, que era jornalista, logo que comecei o curso. Ele disse que já tinha reformado o anel inúmeras vezes, e que agora era a minha vez de ficar com ele. Eu sempre gostei desse reconhecimento que meu avô me dá: inesperado, pulando gerações, me fazendo pensar que sou a preferida entre todos os netos. É o que eu mesma faria com ele diante de todas as pessoas que existem.

Enquanto tento, dessa vez sozinha, ir também me resolvendo e me encaixando em relação a isso, vou vendo de novo a minha casa, meu chão, minhas paredes e minha vida como um todo — o quanto há dele nisso tudo. Penso inclusive se é possível que eu de fato seja algo diferente e único, e não só uma continuação de tudo que ele fez. Ou se ele é que foi um prenúncio tão desejante de tudo o que eu ainda quero fazer. Ou se estamos num mesmo caldo do tempo, informe e latejante, cruzando caminhos à mercê das ondas.

Hoje meu avô mal fala, mesmo quando faz bastante esforço — o som quase não sai mais da sua boca, a traqueia atravessada por um tubo. Mas sei que pensa, vejo bem que reage a cada sílaba que eu digo. Ele agora está numa cama hospitalar e se fixou com peça central e imóvel da sua casa-museu, insuportavelmente preso ao próprio corpo. Mas eu ainda espero e insisto que o tempo acelere, corra, voe, e que de repente dê um salto pra fora do sufoco de agora e ele se torne de novo um guia desenvolto daquele espaço, como tantas vezes foi do mundo inteiro pra mim. Por isso pego enfim o vaso de dentro da caixa onde estava, tiro a poeira da superfície com um pano limpo, acho que vou deixá-lo bem no centro da minha mesa de cabeceira.

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